COLOCANDO A EMPRESA "NO PONTO"


PUBLICADO | DOM M6

Como muitos da minha geração eu também já tive um fusca, ano 62, que certamente teve papel importante na minha formação em mecânica. De tanto montá-lo e desmontá-lo eu o conhecia como a palma da minha mão, e com grande intimidade, chamava todas as peças pelo nome. Meu maior prazer era a regulagem, colocar o meu fusca “no ponto” – escutar o ronco do motor e ter a certeza de que as peças estavam em perfeita harmonia, obedecendo fielmente ao comando do acelerador e consumindo somente o combustível proporcional à regulagem. Era o máximo para um feliz proprietário dominar os segredos da regulagem.

Então eu cresci, saí da escola e fui para o mundo empresarial; trabalhei em quase todos os setores de uma organização e ocupei funções em todos os níveis hierárquicos possíveis nas mais diversas organizações. E qual foi a minha constatação? Que as empresas também se desregulam e precisam tal qual o fusca, ser reguladas, ou seja, colocadas “no ponto”.

As semelhanças não param por aí. Os sintomas de uma empresa fora do ponto são os mesmos do fusca desregulado: muito ruído, pouca velocidade e alto consumo de energia. Não adianta o presidente acelerar – a empresa não vai corresponder e, se andar, o esforço empreendido pode ser tão grande a ponto de questionarmos se valeu à pena o sacrifício.

Conheci uma empresa em que a diretoria estava extremamente desalinhada, sem nenhuma sintonia e, ao invés de resolver o problema a fim de restabelecer uma freqüência, decidiu-se revestir a sala de reunião com um isolante acústico, para que as brigas durante as reuniões não chegassem aos ouvidos dos funcionários!

A grande questão que me intrigava era a pergunta, até então sem resposta, pelo menos para mim: por que pessoas bem intencionadas, com ótima formação, currículos invejáveis e dedicação total e exclusiva à empresa não conseguem trabalhar em harmonia a ponto de desregular toda uma organização?

Expandi o campo de visão, passei a olhar não só para a minha organização e quando procurei conversar com outros dirigentes de empresas percebi que, embora alguns achassem normal essa situação, a grande maioria se incomodava com ela e, à sua maneira, tentava, em vão, resolver o problema. Constatei que as preocupações eram comuns e clássicas, variavam muito pouco em função das características particulares das empresas, dos produtos e serviços oferecidos, da composição do capital e da região. Mais recentemente, verifiquei que em alguns países da América do Sul, onde tive a oportunidade de trabalhar, o retrato era semelhante.

Outra coisa me chamou a atenção. Não só as preocupações são comuns e clássicas, o que se faz para atenuar seus efeitos ou eliminá-los é também comum e clássico. Como vivemos num contexto empresarial “equilibrado”, tanto os problemas como as soluções são sempre os mesmos. Percebi que as soluções são muito baseadas na história da empresa – por exemplo, um dirigente que acaba de trocar de empresa, ao se deparar com um problema semelhante ao vivido e resolvido por ele, na antiga organização, tentará reproduzir o que fez antes. Esse fato se repete assintomaticamente. Tenta-se usar em situações de hoje, um remédio que deu certo no passado – é a história fazendo outra história que, na maioria das vezes, não traz os resultados esperados.

Quando o remédio não surte mais efeito, a conclusão é de que ele está fraco e o melhor a fazer é administrar ao paciente uma dose ainda mais forte, do mesmo remédio. Esse procedimento faz com que a dor fique crônica, ou seja, os dirigentes se acostumam com a dor e o remédio. Trata-se de um sintoma perigoso, mas muito encontrado nas organizações, que quando se instala, faz a empresa perder seu senso crítico e incorpora uma síndrome que chamo de “Conformismo organizacional”.

Capitaneada pelos seus dirigentes, a organização passa a se adaptar às contingências e se especializar em desculpas, o que resulta na perda da capacidade de reagir e, principalmente, de antecipar-se aos movimentos do contexto. Se perguntarmos aos seus diretores se está tudo bem, a resposta será sempre a mesma: “estamos sobrevivendo, não é fácil ser empresário no Brasil…”.

É como o dono do fusca, que já sai de casa com peças sobressalentes no porta-malas, pois conhece todos os problemas do carro, adapta-se a eles e incorpora o sentimento de que são normais de acontecer. À pergunta, se as coisas vão bem, tem uma resposta semelhante à dos dirigentes empresariais: “fusca é assim mesmo, esses problemas são normais de acontecer”.

A questão para mim ficou clara, mas gerou novas perguntas. O que leva as forças internas a serem concorrentes entre si e drenarem energia tão valiosa? Por que se lançam produtos em função da capacidade interna e não da necessidade do cliente? Por que se insiste em tratar da mesma forma clientes com necessidades diferentes? Por que algumas áreas da empresa se fecham a tal ponto de tomar decisões que impõem sacrifícios aos clientes?

Faltavam as respostas e fui a campo. Naquela ocasião, para fazer a empresa render mais, recorri a várias oficinas e experimentei as ferramentas disponíveis na época, mas todas elas privilegiavam apenas uma parte, um aspecto, e não tratavam a organização de uma maneira global. Isso me obrigou, como bom mecânico, a pesquisar uma forma abrangente de “regular a empresa”.

Aprendi muito com isso, e um dos maiores ensinamentos foi de que não bastaria simplesmente trocar as peças defeituosas ou danificadas por novas, pois estas rapidamente apresentariam os mesmos defeitos. Outra constatação importante – as soluções baseadas na história não necessariamente resolvem problemas novos, e induzem à tentativa e erro, o que muitas vezes custa caro. Ou seja, uma ação que consertou um defeito ontem nem sempre serve para eliminar o mesmo problema, hoje.

Estava mais perto da resposta, mais ainda faltavam algumas pedras-chave no tabuleiro, por exemplo, tratar do motorista (um mau motorista também desregula o fusca). A última regulagem cuidava da harmonia entre o motorista e o carro.

Uma ocasião, conversando com um presidente de uma grande rede de varejo sobre o conformismo organizacional que se instala nas organizações, ele, incomodado com a postura conformista de sua diretoria, me convidou para suas reuniões mensais – meu papel seria observar a dinâmica e o desenrolar das reuniões e, juntamente com ele, tentar entender suas origens.

Foi uma experiência reveladora. Ao chegar ao local da reunião não notei nada de diferente de tantas outras salas que conhecia, por isso descartei as instalações como causa do conformismo – havia uma mesa comprida e o presidente ficava na cabeceira; as primeiras cadeiras, da direita e da esquerda, eram destinadas aos diretores mais importantes e as restantes, disputadas pelos demais diretores. Na primeira reunião foi discutido o aumento da taxa de inadimplência, item extremamente importante para uma rede de varejo. Lida a pauta, o presidente virou-se para a direita e perguntou ao diretor financeiro, responsável pela referida taxa de inadimplência, qual era a solução para eliminar o problema e que medidas ele propunha aos demais colegas da mesa para reduzir os índices a patamares normais e historicamente aceitáveis.

Abrindo um parêntese nessa história, é bom lembrar que nesta organização, como em muitas outras, o diretor financeiro era cobrado pela taxa de inadimplência, ou seja, no final do ano o seu bônus (ou seu pescoço) seria afetado pelos níveis da taxa.

É evidente para uma pessoa que vê seu sucesso ou fracasso ligado à taxa de inadimplência, que na dúvida quanto à concessão de crédito, sua decisão seja por não concedê-lo.

Se você, caro leitor, fosse o diretor financeiro desta organização e estivesse exposto a essa forma de cobrança, que resposta daria ao presidente? A minha resposta, nessas circunstâncias, seria a de rever e endurecer os critérios de concessão de crédito, deixando claro que o indicador de desempenho tem papel importante na tomada de decisão. Como a resposta dada pelo diretor financeiro era compatível com a área que ele ocupa e com o mencionado indicador de desempenho, ela foi aceita pacificamente por todos os participantes da reunião.

No mês seguinte estava eu na mesma reunião e imaginem só o item principal da pauta (principal e único, pois em muitos casos o primeiro item ocupa todo o tempo da reunião)? Queda nas vendas! O presidente então se vira para o lado esquerdo e pergunta ao diretor comercial que ações deveriam ser tomadas para que as vendas voltassem aos padrões normais.

Convém salientar que o futuro deste diretor comercial, semelhante ao do diretor financeiro, estava ligado a um indicador, neste caso o de volume de faturamento. Nessa situação, é fácil antecipar a resposta que ele deu ao presidente: “precisamos flexibilizar a concessão de crédito”.

Conversando com o presidente, ficou claro que a existência de indicadores conflitantes era uma das causas da organização estar rodando fora do ponto, e que sua inquietação se devia à passividade com que as decisões eram aceitas. Montamos, então, um plano de ação, no qual eu deveria investigar a fundo a desregulagem, definimos algumas lojas típicas e fui incumbido de ver como as coisas de fato funcionavam.

Com muito sacrifício, após passar pela barreira dos gerentes regionais e das lojas, que a princípio se sentiram ameaçados com a minha suposta intromissão, consegui finalmente, chegar ao vendedor. O que me surpreendeu foi que a maioria deles não via qualquer problema em conviver com os referidos indicadores conflitantes. Todos estavam perfeitamente adaptados e tinham desenvolvido procedimentos particulares para não perder os clientes que em determinadas situações não tinham condições de obter crédito, pois, como me disseram: “temos que agir assim, pois hoje este cliente não consegue comprar a crédito, mas já sabemos que no próximo mês, com esta mesma ficha, ele vai conseguir. Aqui nesta loja foi sempre assim, mês ímpar não tem crédito, mês par tem...”

A constatação dos efeitos nocivos do conformismo organizacional é o primeiro passo e a solução deve ser de forma abrangente, não particularizando nenhum vetor. A solução passa pelo alinhamento dos indicadores, ou seja, colocar a empresa no ponto significa regular os indicadores individuais, colocando-os na mesma direção. O conflito rouba energia.

Em outra situação, trabalhando com uma empresa de ônibus urbano, os controladores da concessão perceberam que a organização estava desregulada e meu papel, juntamente com os gestores do negócio, era colocá-la novamente no ponto. Como já havia aprendido anteriormente – a leitura dos indicadores individuais determina de forma bastante clara a regulagem da empresa – e, como primeiro passo, conversei com todos os dirigentes e ficou claro que a “pontualidade” era um dos indicadores principais da organização. De novo fui a campo falar com os motoristas, atores fundamentais no sucesso desse indicador. Constatei que eles reconheciam a pontualidade como importante e fiquei sabendo que o sistema de premiação era também em função do indicador. De tempos em tempos, cada motorista tinha um prêmio relativo à pontualidade e, tacitamente, os últimos colocados sabiam que seriam demitidos.

Nesse contexto, aparecia claramente, mais uma vez, um conflito de indicadores. Em conversas francas com alguns motoristas, quando perguntei sobre o cliente, ou seja, o passageiro do ônibus, eles me confidenciaram que muitas vezes o cliente era um transtorno e um empecilho para eles atingirem índices de desempenho aceitáveis, não só para ganhar prêmios, mas também para preservarem o emprego. O sentimento coletivo era de que o cliente atrapalhava, pois bastava o motorista estar atrasado para a maioria dos passageiros querer descer ou subir no ônibus.

Outro exemplo é de uma empresa de engenharia. O gerente da área de projetos em reestruturação recebeu uma copiadora que, logo, começou a causar transtornos, principalmente no final da tarde. O motivo era que o estagiário que cuidava dos arquivos e operava as máquinas copiadoras, tinha aula à noite e precisava sair às 16 horas. A partir deste horário, quem precisasse de cópias deveria tirá-las pessoalmente, o que gerava um desconforto coletivo e causava transtornos na rotina diária da então calma área de projetos. A solução veio rápida e unilateral. O gerente determinou em um quadro de avisos que as cópias só seriam tiradas até as 16 horas.

Nessa minha jornada, outro fato afetou-me pessoalmente. Numa tarde de sábado, comprei uma camisa num shopping de São Paulo, em uma dessas lojas famosas. Seria um fato comum e passaria despercebido se a roupa não tivesse sido rejeitada pela minha família. Não bastaram todos os meus argumentos a favor, a decisão foi unânime, e a sentença breve – eu deveria trocar a camisa. No sábado seguinte, já escolado, fui com uma das minhas filhas à loja, na intenção de trocar a camisa, e qual não foi minha surpresa ao constatar que aos sábados essa loja famosa não trocava mercadorias. Fui até o gerente e ele, meio apressado, me disse que não perdia tempo com trocas aos sábados, já que era o melhor dia para “vender” camisas. Estava claro que o principal indicador deste gerente era o volume de faturamento e que essa empresa estava fora do ponto, pois ele tirou nota dez no indicador venda e zero no indicador fidelização de cliente, ou seja, a organização perdia, tendo a sensação de estar ganhando.

Enfim, decorridos alguns anos, a equação ficou completa e batizei esse conceito, originado da pesquisa e do trabalho de campo, de “Sincronismo Organizacional”. Seguindo a analogia com o famoso fusca, significa alinhar as peças e o motorista conforme o tipo de utilização que se quer dar ao carro. O Sincronismo Organizacional caracteriza-se pelo alinhamento dos três fatores fundamentais para o sucesso de um empreendimento - estratégia, processos e pessoas. Para isso, é necessário que os indicadores de desempenho desses fatores sejam adequados e coerentes entre si. O redesenho dos processos tem sido um dos instrumentos-chave para se obter o Sincronismo, pois permite projetar todas as mudanças necessárias para que os processos atendam aos requisitos da estratégia da organização e se transformem, efetivamente, em vantagem competitiva. Portanto, estou falando de sincronismo interno entre as áreas da organização e entre os processos organizacionais, bem como em sincronismo com o ambiente externo: clientes, sociedade e fornecedores.

Como resultado desse esforço orquestrado, temos a capacidade aguçada da organização em perceber e adaptar-se rapidamente às mudanças do ambiente, cada vez mais competitivo, assim como agilidade em adequar seus processos e pessoas a essas exigências. Entretanto isso só é conseguido se entendermos a organização como um sistema vivo e dinâmico.

Resumindo, antes de mexer em alguma coisa, um bom mecânico de empresas deve primeiramente conhecer a lógica e a ordem de grandeza da organização e, num segundo momento, os indicadores de desempenho, o funcionamento e a inter-dependência das partes organizacionais, para só depois deste exercício de abstração, promover alterações.

No final das contas, constatei que tanto o mecânico do fusca como o mecânico de empresa usam o mesmo conceito para obter sucesso. Ah! Mais tarde também constatei que um bom clínico geral se alimenta dessa mesma linha universal de pensamento. Mas esta já é outra história...



O Sincronismo Organizacional

Sempre me intrigou o fato de que a maioria das pessoas - estou me referindo aos alunos e gestores de empresas - gosta ou prefere iniciar uma conversa relatando, por ordem de importância, aquilo que mais lhes incomoda, suas preocupações organizacionais...


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Sincronismo Organizacional

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pelo Professor e Consultor Paulo Rocha

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